Almanaque vem do árabe al-manakh, que é o "lugar em que o camelo se ajoelha". Ponto de reunião dos beduínos para conversar e trocar informações sobre o dia-a–dia.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

35º DIA - Não estamos mais vivos!

A tudo isso eu me refiro, sempre e a todo instante, como se nada disso sequer tivesse acontecido, a não ser em minha cabeça. Ouço o passo, ainda agora, na escada e vejo quando ele abre a porta e me assombra, e me sufoca, e seus olhos de um amarelo faminto, de uma fome que não tem nome, gritam no fundo da minha agonia, como se o grito fosse uma extensão de sua vida. Ele vem e me leva e deixa outro em meu lugar, um outro que agride, que violenta, que maltrata e que imita até mesmo meu jeito de falar, de andar, de sentir e de fazer a barba. Nem sempre eu sei o que se passa, sei que eles vêm às vezes de branco, e me tiram o vermelho que lhes falta no rosto e também na alma. E às vezes eles me dão em troca, o verde-ouro, um laranja-ocre, e um branco-penicilina, para curar a doença que não tenho, e tirar da minha cabeça aquele que na verdade mora longe de mim. No leito branco, como convém a palidez dos purgatórios, eu tenho a certeza de que deus já não habita entre nós, pois a cruz no alto da porta se mantém vazia mas nos recorda a todo instante que talvez em algum lugar ele espere por nós. Já não posso comer a carne desses mortos que me servem todos os dias, pois que a carne morta é fria e pálida, e essa é quente e é escura. Já nem sequer posso comer aquilo que acompanha esses mortos que se recusam a serem brancos e frios, pois que parecem tão vivos que não convém que os provoque: nunca se sabe o que se passa nas sombras de quem está vivo. Hoje eu quis uma oração e rezei junto ao portão do purgatório e via os santos passarem e vi demônios sorrirem, e percebi então, que o purgatório é isso de se estar a ver o mal e o bem caminhando civilizadamente, mas nunca poder escolher com qual dos dois queremos andar. Hoje tive outra das muitas revelações sobre a natureza do purgatório já que céu e inferno, não os conheço. O purgatório é esse eterno repetir de gestos e funções, em que nada nem ninguém criam. No purgatório faltam imaginação e sensibilidade. No purgatório sobram maquinismos e horários. O purgatório é sempre o mesmo branco. O purgatório é sempre as mesmas pessoas que fazem as mesmas coisas. Ontem outro purgante, como chamo quem está aqui purgando uma pena, foi-se, talvez a sua pena tenha acabado. Quem sabe agora ele possa escolher de que lado quer estar. Meus pecados devem ter sido pequenos, pois me parecem brandas as penas que me aplicam: me tiram um pouco de sangue, me dão alguma cor no meio desse branco, e algumas pílulas que acredito sirvam para manter o outro à distância, já que desde que as tomo ele de mim não se aproxima. Alguns companheiros devem ter mais pecados pois que os amarram e os eletrocutam em dias certos, mesmo que eles tenham se redimido e mostrem um arrependimento tão sincero, que chegam a chorar na hora em que os levam. Mas acho que deve ser assim, a cada um a pena que merece e o máximo que podemos fazer é chorar com eles e gritar, como se deus pudesse nos tirar dali. Gritamos como se Ele de fato nos pudesse ouvir. Estou tão longe de tudo e de todos, tão longe da minha casa, tão distante da minha vida, que não sei mais se sou quem eu penso que seja. Sei apenas que estou vivo, por que só vivos sangram, só vivos sentem fome, sentem medo, sentem dor, sentem saudades mesmo daquilo que não conseguem explicar. Eu estou vivo por que vivos choram. E eu choro muito. Eu choro quando estou carregado e cinza, sem claro por dentro. Eu choro como a chuva chora. Ele veio ontem e eu estava dormindo. Não o vi chegando, não o vi se aproximando e mesmo que eu percebesse não o teria deixado ir embora. Eu sinto falta dele, por que ele me lembra que sou frágil e que eu existo, e não sou um sonho qualquer, nem o conto de um escritor qualquer, nem mesmo a idéia de um homem que habita ainda na futura vontade de deus. Ele veio e vi quando me mandou sair e se pôs em meu lugar. Eu olhava de longe enquanto ele se debatia na cama. Vi quando ele agrediu os de branco que tentavam impedi-lo de sair. Quando nos dentes dele eu vi o sangue daqueles seres, eu soube o que eles faziam com o que de mim tiravam. Hoje eu vi o tamanho do pecado que foi descobrir os segredos daqueles homens e mulheres. Hoje eu fui escolhido para ser eletrocutado. Chorei como todos choram de arrependimento e tentei dizer a eles que não era eu, era o outro. Mas não me ouviram. Arrastaram-me pelo corredor azul, e me deixaram na sala, amarrado, amordaçado, assustado e sozinho. Nem o outro me acompanhou. Quando abri os olhos, percebi mais uma coisa sobre o purgatório: ninguém aqui esta vivo. Estamos mortos, ou pelo menos é nisso que esperam que acreditemos. Não morremos, isso é fato. Mas já não estamos vivos!
André Peres Barbosa de Castro